quinta-feira, 29 de abril de 2021

O VIÚVO

 

Fiquei viúvo, já lá vão uns anos.

Foi a minha estreia nesse estado civil.

A situação ocorreu duma fatalidade que, não referirei por ser desnecessária, quando eu estava a caminhar para outro patamar acima, na escala dos entas.

Nunca pensei que ser viúvo fosse tão complicado. Não pela incapacidade pessoal para sobreviver autonomamente mas, pelo facto de tudo girar em torno da parvoíce dos outros e, sobretudo, das outras.

O passar do tempo além, do permitir a retenção das recordações e mágoas mais acintosas, permite igualmente, uma cedência à intromissão na nossa zona de conforto a terceiros.

A minha vida em casal sempre decorrera dentro da normalidade possível, dada pelos 35 anos de discussões e emoções. Nunca estivera na inconstância de uma desnecessária dependência do outro. Não. Tudo, era falado, acordado e executado a meias, em parceria.

Também no emprego, a minha vida era estável e direcionada para o labor. Nunca tinha tido relacionamentos extra-conjugais, tanto mais que, entre colegas de trabalho a coisa nunca funciona, ou raramente funciona bem.

Uns dias, depois das exéquias fúnebres, comecei a notar alterações no comportamento das pessoas. Neles e nelas. Eles, com uma insistência crescente para aceitar os convites para borgas e farras, como até então não existia. Elas, com olhares vivazes e sugestões de auxílio, caso eu, necessitasse de algo. Tudo isto vinha de pessoas que nunca tinha-as identificado como interessantes ou interessadas numa amizade mais ou menos desinteressada.

Os vizinhos, os conhecidos e os amigos do trabalho eram, em grande parte tipos de amantes, bordéis e grandes copofonias. Se eu andasse com eles, na paródia, sentir-me-ia deslocado daqueles ambientes e passaria, quase de certeza, por parvo ou atrofiado.

As vizinhas do prédio, maioritariamente divorciadas e viúvas, andavam sempre na busca de encosto e de amizades coloridas, sem compromisso.

Umas semanas depois, o avanço delas era mais ostensivo, em especial o das vizinhas, mais despidas, no elevador, na hora de ir pôr o lixo nos contentores, e com cumprimentos declaradamente atrevidos. O comportamento deles, pelo contrário, ficou mais frio e distante, com conversa sobre gajas, futebol, política e carros.

Com o passar de alguns meses, comecei a encontrar-me ao fim da tarde nos cafés e nas lojas do bairro, com elas, e nalguns casos a acompanhá-las no caminho de regresso a casa. Por vezes, com eles, a bebericar uns cafés ou vê-los nas áreas de repasto dos shoppings, por vezes com a família e com ar enjoado, outras vezes com as amantes e amigas desinibidas, e egoisticamente, a tentarem escondê-las dos olhares dos outros.

Ao fim de alguns anos, poucos, as coisas apimentaram com as conversas delas, mais directas às ofertas de companhia para um passeio de manutenção pelo parque e, quiçá, para uns jantaritos. O meu problema começou a quantidade relativamente grande da oferta, apesar da pouca qualidade disponível. Demasiado velhas ou feias para o meu gosto, magras ou gordas em excesso. As mais apelativas eram muito novas para mim, pelo que nem sequer me abordavam, ou eram familiares das outras e, por tal motivo, eram literalmente afastadas do olhar e das conversas.

Esta indecisão terrível, levou-me a falar com um antigo director da empresa, mais viúvo do que eu, e que me havia promovido, em troca do meu silêncio, pelas suas assediantes reuniões com o mulherio da empresa. Quase todas elas viviam em dependência absoluta de tudo e de todos. Logo, mais apalpadela, menos encosto, não fariam mossa. Ao explicar-lhe, em detalhe, o meu dilema, fui elucidado de como a coisa para os viúvos funcionava.

Em linhas gerais, disse-me que as divorciadas e viúvas, eram independentes, não queriam compromissos duradouros, porque estavam fartas de aturar companhias, e apenas pretendiam uns desempoeiramentos esporádicos. Simples. Assim mesmo. Deveria, apenas, evitar as solteironas, porque essas querem alcandorar-se no alto de um encosto. Isto deu-me que pensar durante umas horas.

Nos dias que se seguiram, comecei a focar-me na vizinha do quarto andar esquerdo, que diariamente, se exibia no elevador pelas vinte e uma horas, ao ir ao contentor dos reciclados, e que a cada dia mostrava mais pele. Gorda, com umas maminhas indescritíveis e com uma vontade de rebentar comigo que, nem lhes digo. A vontade de ambos durou umas três semanas até que, começou a mostrar-se enfastiada, aqui pelo figurão.

Seguiu-se a senhora do rés-do-chão direito. Balzaquiana bem-parecida, com uns lábios sensuais que, me reteve nos seus lençóis mais de um mês, com visitas minhas, quase diárias, ao seu quintal para recolher coisas que caiam da minha janela. Fartou-se de mim mas, não me importei. Por esta altura, já todo o bloco de apartamentos sabia que havia um viúvo apessoado e atiradiço à espera de quem quisesse conversar com o corpo.

Quando dei por mim, uns quatro anos depois, perto da data do meu aniversário número sessenta e nove, estava desde os últimos três meses a almoçar e a jantar fora, a passear sozinho e a dormir todos os dias com a vizinha quarentona, do prédio da frente, quase como se fossemos um casal. A mulher era bem- feita para a idade, tinha um apetite sexual inesgotável mas, extenuante para mim. Ponderei e resolvi que aquele sexo não era tudo na vida. Vim-me embora e regressei ao outro lado da rua, donde não deveria ter saído. 

Pensei na falecida.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pensei na rotina sexual com a dita. No mesmo paladar e gosto dela. Nas variantes possíveis, na desbragada loucura dos últimos anos, em oposição ao certinho do antes. Pensei e voltei a pensar.   

Conclui que as mulheres são mais loucas, insatisfeitas, esfomeadas e coleccionadoras de homens, do que os homens de mulheres. Nunca se fartam, querem sempre a perfeição e a satisfação plena. Até ser atingida essa fase, esgotam-nos. Secam-nos. Mirram-nos, especialmente, quando podem usufruir do sexo sem contratempos, sem contraceptivos, sem horários, sem pressas nem limitações. Quanto mais velhas, mais loucas. Por isso, são cada vez mais raros os viúvos que convivem, coniventemente, com as falsas ou verdadeiras viúvas ou separadas profissionais.

Por isso, percebi que o viúvo, se for esperto e gostar das mulheres, pode, com o espírito solidário, de forma desinteressada, ajudar as mulheres a serem mais felizes, mais satisfeitas e menos agrestes com a vida. Basta querer. Depois de um período de treino, é sempre a abrir…

Agora, estou com a vizinha do número trinta e sete, do quinto-frente. No ano em que enviuvei, ela era um ele, mas com umas operações ficou toda jeitosa, esta gaja de 52 anos. Acho que vou ficar por aqui, porque a avaria que tenho no mecanismo está, a fazer-me descobrir outras sensações que esta vizinha me acirrou. Demorei seis torres e cinquenta e sete vizinhas a descobrir que ser viúvo pode ser muito bom.

 

 

Texto: Fernando de Sucena

Imagem: Google  

 

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