Todos nós temos recordações mais ou menos emotivas e saudosistas das Avós.
Tive duas, como quase toda a gente. Uma que era mãe do pai e outra que era filha da mãe. E foi com esta última, quiçá por ser mesmo filha da mãe, a que mais tempo atirou as minhas madurezas e com quem mais falei.
Como tal, ela também, escolheu-me como favorito de entre os sete netos.
Era uma velhota, nascida em 1901, que viveu os loucos anos 20 do século XX, na plenitude de nariz empinado e a arrogância do pessoal de Vila Nova de Foz-Côa, que partiu para África, Angola (Luanda e Malanje) com os padrinhos e que regressou, 20 anos depois com uma galinha em cada mão, só, revoltada e com uma experiência de vida extraordinária. Falava quimbundo, viveu num mundo burlesco e glamouroso (semelhante ao que os portugueses puderam perceber de forma clara na telenovela brasileira Gabriela, com Bataclans, os homens casados nos bordéis, e tudo o mais).
Como todas as avós de carrapito, quase analfabetas, toda a sua história de vida foi transmitida, de forma seleccionada, há única pessoa em quem confiava que não arranjaria encrencas entre as filhas: eu.
As avós antigas, como a avó Maria, não tinha tatuagens, usava cabelo sem carrapito à velhota. Tinha um problema de força num dos braços que partira quando era nova mas, como não havia assistência médica como a existente agora, as coisas resolviam-se com mezinhas e tratamentos caseiros. O resultado era o corpo cheio de empenas nas articulações, ossos tortos e arreados, entre outras deformações fisiológicas no organismo, que eram características dos idosos idos de então.
A avó Maria José, à semelhança da maioria das sogras, sempre foi mais chegada ao genro, coisa que por mais estranho que pareça, ainda hoje se mantém duma forma geral. Também por isso, fui sempre mais acompanhado, protegido e incentivado em quase tudo mesmo, nas mais terríveis barbaridades pela avozinha que, que à semelhança das avós de hoje, estragam os filhos da mãe, fazendo com os netos, o que nunca fizeram com os filhos. Coisas!
E assim, desta forma, simplista me tornei naquilo que sou, herdando dela, não só os valores salazaristas e republicanos que ela passou às filhas, como, sobretudo, os valores sociais e morais que eram bons para a tosse. Só que, sendo eu um dos nascituros dos 60’s, tornei-me, mercê da Abrilada, tal qual a casta de políticos que gornam Portugal, um desvairado, um oportunista e um ávido consumidor e utilizador de peixeirada.
Mesmo assim, a avó Maria, embora não entendendo, fazia de conta que me entendia, para que a filha não perpetuasse, na eternidade, aquilo que a velhota achava que a filhota tinha de mais débil: não lutar nem enfrentar as coisas e resistir até ao fim. Era a minha avó, uma das casmurras velhas que diziam antes quebrar que torcer, sobretudo, quando a razão e a verdade nos assistem.
A avó Maria era aquela avó que nas excursões bebia um copito, cantava umas modinhas e era alegre, porque naqueles momentos, o que interessava era comer, beber e bailar. E as mulheres sempre foram exímias na diversão. A minha tia era da mesma massa ou, não lhe corresse sangue mestiço nas veias. Uma festa sem mulheres não tem piada nem animação. Também, nisto, aprendi com a velhinha que me ensinou que nestas situações o que interessa é divertir e divertir, pois já bastavam as agruras do desenvolvimento diário para entristecer. Curiosamente, passaram-se cerca de 45 anitos e as coisas estão quase na mesma. As pessoas estão tensas, enganadas, e supercontroladas, tal qual decorria naqueles tempos cinzentos e pidescos, só que agora, a PIDE é cor-de-rosa.
Toda aquela faladura, acresceu na minha essência, o espírito curioso, corrosivo e debochado de muitas das experiências de vida mirabolantes, narradas pela idosa mãe das outras mães.
Lamento não poder falar das coisas que ela me contava, sobre os pais das filhas que andavam todos pelos Bataclan da sua juventude que lhe permitiu viajar, conviver e aventurar-se pelo jet-set provinciano angolano, nos anos 20 e 30 do século passado.
Os seus segredos e omissões morreram com ela e alguns irão comigo, porque respeitosamente, acho que não devemos de remexer nas memórias dos mortos. Não porque me causa algum pejo a morte, mas, sim por educação e respeito. Sim respeito. Ainda sou desse tempo.
Vi a única fotografia que ela tinha do meu avô, coisa que nem a filha, a minha mãe, viu.
Falou-me de detalhes e ocorrências pormenorizadas do que era a vida dos fazendeiros e comerciantes e da relação de superioridade branca em relação ao negro.
Descreveu-me como as mulheres que não queriam ser submissas aos homens, maridos e amantes eram prejudicadas e escarnicadas pelos mesmos.
Vingavam-se, arrastando, com rancor, filhos e bastardos para a sua fuga egoísta, muitos sem serem perfilhados. Era assim que as mulheres, de pelo na venta, reagiam às contrariedades, porque não quebravam.
A avó Maria também falou de que havia racismo, caciquismo e machismo descarados. Contava coisas do uso e do abuso das mulheres face aos homens brancos ou pretos desde que com algum poder social ou financeiro. Elas, às mulheres, sujeitavam-se na, grande maioria, a sevícias e violações físicas, psicológicas e sexuais pois os maridos/amantes eram donos delas.
Não alinhando nestes desvarios masculinos, eram, elas, abandonadas pelos protectores e faziam-se, então, à vida sem apoios nenhuns, até porque a sociedade, na época, era muito mais repressora e menos permissiva às diatribes do mulherio, e às não casadas.
A velhota sendo desbocada, como quase todos os idosos, e perante alguma lucidez e educação impostas pelo decoro e respeito nunca extravasou as narrativas curtas e adensadas de segundas intenções para, descrever como era o comportamento da sociedade patriarcal, naqueles loucos anos 20, até ao seu regresso definitivo ao Portugal Continental nunca mais regressando ao Portugal Ultramarino.
Regressou à Pátria mas não ao torrão natal. Salazar assumiu o poder e as coisas ficaram mais fáceis para mulheres balzaquianas, lutadoras e casmurras. Assentou arraiais na capital, ainda muito provinciana, até morrer, na mesma cidade onde viu crescerem às filhas e um cacho de netos.
Resumindo, foi uma vida plena de acção e teimosias que serviram de lição para os outros que se lhe seguiram. Gostei muito da avó Maria. Depois de nós os netos, mais ninguém se lembrará dela nem das suas histórias.
Eu ainda me recordo, dos dias de férias passados a sós com ela, em São Vicente, em casa da avó; do ir dar milho aos pombos, comprado numa loja no início da subida da Calçada dos Cavaleiros; correr e molhar os pés e as mãos no lago que havia no Miradouro de Santa Luzia; do correr pelo Castelo de São Jorge, que tinha entrada à borlix e de tantas outras coisas boas que fazia junto da velhota.
Até mesmo em casa dos pais, nos dias em que ela ficava na minha casa, eram dias de festa. Ver televisão até às tantas, porque ela gostava de ver ópera e teatro português, os meus cotas nem por isso. Depois do 25 de Abril, davam alguns filmes mais ousados, com umas maminhas à mostra, pelo fim da noite, que eu ia vendo de soslaio, enquanto a idosa cabeceava de sono e dormitava um pouco. Coisas engraçadas e inofensivas que só fiz por causa da avó Maria, uma avó muito avant-garde. Ainda hoje, aplico alguns dos seus ensinamentos ou conselhos E nunca me prejudicaram, e, também, três palavras ou expressões que comummente usava: vai à tuge; querias funge mas levas mandioca e aiué.
Raramente se queixava da idade, assumia a velhice e ateimava nas mesmas coisas, taras e manias das outras velhas e rezingonas avós. Viveu como calhou e teve de ser, sem arrependimentos.
A avó Maria, o filho da mãe e a mãe dos 2 filhos.
Texto: Mário Fernando Teixeira
Imagem: Autor - Arquivo/ProdutoresReunidos

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