A vida é o que tem de ser e não aquilo que queremos. Os
traumas podem ser ultrapassados ou afectantes para o futuro. Quer dizer, só
podemos ultrapassar os problemas resolvendo-os como, também, ultrapassar os
traumas e os medos lutando contra eles.
Vem esta introdução a propósito de situações traumatizantes
que me sucederam, mas que ultrapassei. Ultrapassar não é esquecer e esse não
esquecer é uma lição para o futuro. Um factor correctivo.
A sorte não existe no sentido de sorte, o inverso de azar. O
que existe é o aproveitamento da oportunidade. Para o bem e para o mal.
Ao longo destas seis décadas de vida, sofri, por acasos, por
parvoíce ou por vicissitudes inexplicáveis, uma série de acidentes e incidentes
que poderiam ter sido fatais.
Não me recordo em concreto, das datas mas vislumbro as
situações como se tivessem ocorrido recentemente. Devia ter uns 14/15 anos
quando na sequência duma discussão com outros fedelhos, ciganos, da mesma
idade, que descambou em porrada, originou que, na ânsia de fugir do confronto
com os Lelos, desatei a correr por ali fora e por centímetros não fui trucidado
por um comboio, numa passagem de nível, na Amadora, que reclamou muitas vidas.
Ainda hoje sinto o vento da deslocação de ar nas minhas costas. Aliás, já falei
desta péssima experiência, e da seguinte, noutra crónica.
Noutra altura, anos mais tarde, ainda os comboios da Linha
de Sintra, tinham estações terminais na Amadora, Queluz, Cacém e Sintra, ao
descer pelo lado errado da gare escapei por porco se outro confronto directo
com o Tromba d'Aço. Um negrão encorpado, puxou-me para cima, quando eu queria
ir para baixo, evitando que fosse arrastado pelo ar e trucidado. Apesar de
embirrar com eles, apesar de me serem indiferentes, estou agora a escrever
isto, graças ao preto.
Pela mesma altura, entre os 18 e os 26 anos, época de
grandes mudanças sociais e rebeldia que eu fazia questão de aplicar para
solidificar a minha personalidade, essência ou, o que quiserem chamar foi
atribulada.
Por aí, tive um acidente de moto na Amadora, naquilo que se
chamava o circuito da estação, pois como a prioridade era sempre de quem
conduzia, a malta das motos andava a assapar. Uma das noites, em que estava com
moto emprestada, na descida da ponte para virar à esquerda para o CC Babilónia,
fui surpreendido, a uns 60 km/h, por um fulano de carro ligeiramente fora de
mão e sem luzes a andar devagar. Não fui morto por acaso, já que apercebi-me ao
acelerar de uns reflexos estranhos, o que me levou a travar, escaqueirando a
motinha do amigo. Durante uns meses andei a amortizar a reparação da sete e
meio. Fiquei com umas entorses e umas nódoas negras e pouco mais. Todavia,
percebi que andar de moto não era, nem seria a coisa mais divertida de fazer.
Uns dias antes, noutra conduta louca, a caminho de
Carnaxide, numa da curvas que ligam a Amadora a Carnaxide, certamente por causa
do sol, fiquei a perceber que o asfalto é escuro e o céu azul, pelo que não é
possível conduzir de rodas para o ar. Foi uma queda simples, mas mais um
incidente.
Não quis perceber que aquilo seriam sinais da providência.
Pior, muito pior, aconteceu uns anos depois. Com efeito,
durante um intervalo nos treinos do clube onde jogava, dois dos fulanos que por
lá andavam convidaram-me para ir com eles levantar uns bilhetes para um
programa de música da RTP, no Lumiar. Saímos de Alcântara e em frente ao
estádio do glorioso, depois de reabastecer, e lançados num picanço entre os
dois, o condutor do qual eu era pendura, atrasou-se ao arrancar e foi
ultrapassado pelo primo, na noutra moto, que se encaixou a meio de um camião
que ia a passar, e nós chocamos com ele.
A chamada faixa de lentos, na época, no Estádio da Luz, era
um um traço de meia dúzia de metros, e em plena 2a Circular, não prevendo a
entrada a baixa velocidade, a entrada a matar causava arrepios, mesmo aos mais
intrépidos.
O resultado foi um morto, um ferido grave, um ferido ligeiro,
e um em estado de choque (eu). Depois se todo radiografado, fui avaliado e com
algumas escoriações, nódoas negras e dorido para caramba, fui para casa.
Durante anos guardei as radiografias todas que eram, positivamente 1,80 metros
de chapas, do interior de mim mesmo, pois como me queixava de dores em todo o
lado, o pessoal da urgência do Hospital de Santa Maria radiografaram-me todo,
pois as queixas incidiam na coluna e nas articulações.
No intervalo de ambos os acidentes, um outro marcou-me
mesmo. Estava a estudar, no então chamado Liceu de Queluz, quando um dia ao fim
da tarde, antes de ir ter com os meus amigos da copofonia, nos Quatro Caminhos,
encontrei um outro que havia recebido de oferta de um primo, uma Casal Boss
usada. Estava com curiosidade em saber como era uma motita e não uma motona.
Depois de falarmos um bocado pedi-lhe, para me deixar experimentar uma volta, e
ele acedeu.
Nem cheguei a andar 50 metros e esbardalhei-me. A coisa
aconteceu na antiga rotunda para Carenque em Queluz, onde estava o chamado o
Homem-Elefante, que orientava o trânsito naquele ponto. O senhor tinha um
problema de pele horroroso. Ao fazer a curva, muito devagar, algo no manípulo
do travão da mota falhou e fui em frente e enfaixei-me num fosso do latoeiro
que havia, onde hoje está uma estação de águas.
Foi barulho e confusão a rodos, a moto ficou com as rodas
quadradas, eu fiquei com um pulso inchado, dores na coluna, calças de ganga
rasgadas, quiçá lançando a moda dos rasgões, e o meu amigo com sucata para
vender. Como não havia documentos, nem licenças, nem nada bazámos os dois dali
e nunca mais se falou de coisa nenhuma. Excelente funeral para a maquineta.
Mas houve mais.
Mais tarde, estava a trabalhar na gráfica do Ministério das
Finanças, não me recordo o ano, mas o Miguel Cadilhe era o ministro do pelouro,
quando num das vaivéns que fazia, num triciclo com caixa motorizado, para
transportar papel da impressão para o acabamento e deste para a expedição,
calculei mal o ângulo de abordagem da curva em relação com o peso e vai daí
catrapumba, na descida travei mal, fiz aquilo que, em gíria se chama uma mula,
(o contrário do cavalinho) e lá foi uma saída do banco por cima do guiador e
uma marca na perna que ainda, hoje, me dói.
Um outro acidente que ocorreu, felizmente sem grandes danos
físicos, foi mero azar.
Numa excursão a Monte Real, com amigos e família, para
tentar fazer a fotografia exótica, subi a uma árvore. Quando me estava a
aninhar, no ramo, aí uns quatro metros, o mesmo cedeu e caí, tipo pássaro morto
no chão. Só não me aleijei, porque, incrivelmente, caí direitinho, tipo múmia,
numa fossa asséptica de folhas e ramos e encaixei direitinho no buraco.
Exceptuando o pivete e algumas nódoas negras, nada mais aconteceu. Sorte.
Também com automóveis escapei de duas, o que me faz sentir
confortável com esta força exterior inexplicável que, por vezes, nos protege.
A primeira situação, ocorreu, nos início dos anos 80, com um
amigo que era comissário desportivo no autódromo do Estoril, e ensaiava umas
passagens em Sintra para tentar ser piloto de ralis. O rapazito, João Pedro,
colaborava comigo no Jornal de Queluz, como fotógrafo, e no qual eu era Chefe
de Redacção, passava pela segunda vez no percurso que fazia parte do troço da
Lagoa Azul, quando sem saber como, perdeu o controlo do Fiat e chocou contra
uns penedos. Com o impacto, dei uma marrada no tabeliê, um encontrão na porta
que se amachucou e enegreceu o meu ombro e cotovelo direitos. As únicas
consequências, deste incidente, no futuro para mim, foram duas. A primeira, foi
que percebi que com os problemas de coluna de que padeço, nunca poderia ser
pendura. A segunda, é que além, de não conseguir ler em andamento, iria impedir
de ler as notas, o chocalhar dentro carro provocava-me má disposição. E foi
assim, na prática e com experiência, que desisti de participar em corridas de
automóveis. Sinceramente aquilo não era para mim.
A outra situação ocorreu na margem sul, na zona da Marateca,
quando regressava à Amadora, com o meu grande amigo Carlos Alberto.
Acompanhei-o ao Algarve onde se deslocara para resolver uns
assuntos pessoais, em Armação de Pêra. No regresso, a meio da noite, e sem que
nada o fizesse prever, despistou-se. Antes do acidente, lembro-me, claramente,
de lhe ter chamado a atenção para o facto de a faixa contínua do separador
central estar do meu lado direito, em vez de estar do lado dele. Não se
apercebeu e quando viu que estava na faixa errada, assustou-se e, em vez de
guinar para a direita fê-lo para a esquerda e despistou-se contra uma árvore,
terminado aí, o tranquilo regresso a casa. Como era noite cerrada e não se via
nada, só pela manhã aquando da chegada do reboque, entretanto chamado, vimos
que a cerca de um metro ao lado estava um penhasco, com pedregulhos aguçados no
fundo. Meio metro mais ao lado, e teria sido uma queda bem mais complicada
pois, o embate faria com. que o chaço de estragasse a sério, e as sequelas
corporais seriam bem mais agrestes. Em cúmulo, bastava ser cuspido do carro
para que a pior cogitação fosse possível. Não foi.
Quer dizer, os traumas podem ser um factor sortudo pois, se
sobrevivemos e continuamos a viver com eles, é porque reagimos positivamente
aos mesmos e ultrapassámos as causas que o criou. A vida sem traumas não seria
tão interessante. Mas, cuidado os outros não têm nada que ser envolvidos, nos
nossos, porque, obviamente, os dos outros não são nada para nós.
Fiquei grato por continuar apto a ser um alvo acidentável.
Fiquei estranho, porém, vivo!
Texto: Mário Fernando Teixeira
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