No tempo em
que havia Liceus e não Secundárias e EB+S com nomes de comunistas, tinha eu os
meus 18/19 anos, descia a Avenida D. Nuno Álvares Pereira, que une as cidades
da Amadora e de Queluz, para o Liceu desta última, quando tomei conhecimento
com a filosofia popular.
Diariamente,
a maioria das vezes, na companhia do meu amigo Carlos Lacão, quando por volta
das 18:00 horas, íamos ambos para o ensino escolar nocturno, ainda coisa séria
e de importância para o futuro dos imberbes jovens de então, a lição opinativa
decorria.
Um fulano,
cabrito de Cabo Verde ébrio profissional, que começava a cogitar as suas
opiniões nas tascas e tasquinhas desde o actual Babilónia até ao antigo Lido.
Aos zigue-zagues pela rua abaixo, a gritar bem alto, a uma velocidade
estonteante e a acertar cada comentário num alvo específico.
Em cada dez
palavras, seis eram a repetição da expressão merda. Tudo ia parar na merda!
Tudo ia à merda! Era tudo uma merda! Por estranho que pareça, essas afirmações
sobre a sociedade estão actualizadas, pois passados quase 40 anos, desde então,
o país, pasme-se, está na mesma: Uma merda!
Ao desbocado
cidadão qualquer pergunta feita, tinha como resposta, a mesma frase
acrescentada da imagem de marca do autor.
Se, lhe
dizíamos, hoje está calor, invariavelmente vinha a resposta: Está um calor de
merda, num tempo de merda, num país de merda…
Se, lhe
perguntássemos porque dizia mal de Portugal, respondia de imediato: Portugal de
merda, Cabo-Verde de merda, brancos de merda, pretos de merda, eu de merda, é
tudo merda!...
Se lhe
disséssemos para olhar para o chão, por causa dos buracos ou das minas caninas
defecadas, atirava qual metralhadora: Cães de merda, donos de merda, ruas de
merda, buracos de merda, merda de merda, câmara de merda…
Até com as
garinas, que contornavam meia cidade para se esquivarem do inofensivo mas
ameaçador bêbado, como todos os bêbados, vociferava assim: Gajas de merda,
filhos de merda, pais de merda, gente de merda…
E o
discurso, diariamente variava na forma, mas nunca no conteúdo. G’anda merda!
Durante
cerca de um ano e meio escolar foi um fartote. Dum dia, porém, desapareceu e
nunca mais o vimos. No entanto, nunca me esqueci do valor único da análise ao
país real que éramos e somos. O que mais me impressionou, foi a cultura que o
preto tinha, mas que o álcool lha destruía tolhia-lhe o raciocínio.
Aquelas
centenas de frases vernáculas, recheadas com a merda, com muito pouco calão
apenso, mas muita pureza na expressão, despertaram-me ainda mais o interesse
pela sociologia da comunicação, sobretudo entre a populaça.
A ele dedico
esta crónica, e a ele devo a criação da bitola comparativa destas últimas
décadas. Entre o grande desenvolvimento que tivemos há uns anos atrás, e a
maceração actual dos três lustros, temos que resumir isto a pouca, média ou
muita merda, por esta ordem!
Texto: Fernando de Sucena
Imagem: Google
Texto publicado originalmente no XOK Magazine e disponível, como outros mais em:
https://xokmagazineblog.wixsite.com/xokmagazine
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