segunda-feira, 31 de agosto de 2020

SALVO PELO SENHOR

 

Sou um agnóstico convicto, ou melhor, meio ateu meio cínico. Não acredito em bruxas mas, que las há, há.

Ocorrem situações inexplicáveis, no resultado, decorrentes de erros nossos, que tinham tudo para serem dolorosas ou marcantes. Definitivamente.

Por duas vezes, ia sendo matado por comboios. Todavia, por razões que desconheço mas, que poderei atribuir ao acaso, sobrevivi, para o bem e para o mal.

Sou do tempo em que o

s comboios andavam, ainda pior do que os de agora, com a agravante de as portas poderem ficar abertas ao longo de todo o percurso, e os degraus exteriores transportarem camadas de passageiros. Condições mortíferas, para o mais pequeno erro que ocorresse. Também era comum andar pelas linhas, atravessar onde calhava, atravessávamos nas passadeiras com sinalização, semi-automáticas, ou com guarda, e subíamos para as composições fora da gare. Enfim, uma barbaridade.

 

As setas indicam como se viajava em hora de ponta nos curtos da CP na Linha de Sintra nos anos 70 e 80.

 

Residente nos subúrbios, era igual a dezenas de milhares, que andavam à penda, e faziam as tropelias acima referidas, com consequências graves na maioria dos casos.

O primeiro grande susto que apanhei, e que não fora ter um coração saudável, estaria hirto num jazigo qualquer, foi por volta dos meus 14/15 anos. Ia numa correria desgraçada a fugir de uns ciganos marados que moravam à beira da minha casa, quando, sem me aperceber da chegada de um comboio vindo do sentido Lisboa-Cacém, atravessei que nem louco, assim que a composição que, seguia para Lisboa, acabara de passar. Fiquei a bater mal, como se calcula. Meteu psiquiatria e tudo. 

 

 A antiga passagem de peões na Amadora, peto dos actuais Bombeiros, onde ia sendo trucidado

 

Antes de me espraiar mais neste incidente, convém recordar que, na época, residia na Amadora e, na Linha de Sintra, havia um comboio que fazia o percurso todo, Rossio-Sintra e, depois, três outros percursos que eram os ‘curtos’ para o Cacém; Queluz e a Amadora. A linha era dupla mas, nas estações passava a ser três, devido ao estacionamento destes tais curtos.  

A sensação, a adrenalina e o cagaço de se sentir a deslocação do vento e a pressão, nos ouvidos, da buzina da composição, é brutal, assustador e arrepiante em simultâneo. Por muitos anos que passem, o arrepio paralisante que se sente nestes momentos é absolutamente indiscritível. Com o envelhecimento, a memória traumática vai-se desvanecendo e ficam apenas alguns momentos soltos e um flash de toda a situação. Ainda bem.

Anos depois, por descuido, outra situação arrepiante.

Mais atento, e cuidadoso, mas fui atraiçoado pela moleza do calor de Verão. O comboio tinha parado, encostado na plataforma respectiva, e o pessoal que se acumulava nos degraus, ia saindo pelo lado errado, em camadas. Às tantas, virado de costas, no sentido contrário, sem me aperceber da chegada súbita de outro comboio, para aceder à plataforma respectiva, larguei o corrimão da porta e deixei-me cair para o empedrado do chão. O estranho é que quando esperava cair, senti-me subir, numa sensação inolvidável.

Um outro passageiro, que estava atrás de mim, ainda no estribo da carruagem, agarrou-me pelo colarinho e puxou-me para cima, porque apercebera-se da aproximação do outro comboio. Era um preto matacão, musculoso, feio para caraças e mal cheiroso, mas a quem devo a vida.

A sensação de cair para cima é estranhíssima. Quando penso nisso, fico alucinado e com uns arrepios na espinha. Mais tarde, muito mais tarde, tive a mesma sensação ao tentar experimentar parapente. Quando me ia lançar do penhasco para baixo, devido a uma corrente ascensional mais forte, subi. Lembrei-me dessa coisa horrorosa e desisti da experiência. A sensação foi similar, com a diferença de que não corri perigo de vida.

Portanto, das sensações mais violentas que tive, estas duas, devo-as à CP. Se existe o Senhor, o que duvido, Ele estava a atento. Se, o Senhor existisse, por certo tinha impedido o erro que despoletou os incidentes. Sobrevivi e já foi passado. Esqueci. Não esqueci, porque a sobrevivência depende da triagem das experiências tidas. Todas. Boas e más. Estas, por muito traumáticas que tenham sido, fizeram aumentar a atenção, o cuidado e o alerta do que me rodeia, levando-me a substituir este defeito (distracção), por outro: o perfeccionismo.

Texto: Fernando de Sucena

Imagens: Google

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