Aquele era o
sábado da decisão. Tudo fora combinado, preparado e pensado até ao pormenor
mais ínfimo, mais entranhado.
Os convivas
e toda a casta de convidados afloravam e unificavam-se nas diversas divisões da
casa à espera do momento supremo do evento que, os reunira ali, desperdiçando
tempo e dinheiro numa situação eventualmente trivial ou, numa gloriosa
ocorrência.
O tempo
mudou e o espaço, também, após efectuado o casamento, a união de facto, depois
de se ter consumado a união de dois seres, surgiu a boda, o banquete, ou a
deglutição maciça de fibras vegetais e animais por dezenas de dentes, mais ou
menos cariados, chumbados em bocas de capacidade razoavelmente vasta, com
hálitos diferentemente classificáveis.
Os olhares e
os esgares de prazer gordamente refastelados nos corpos dos seus titulares, não
indicavam mais do que o visível: um apetite demolidor.
As dezenas
de convidados dos nubentes, iam-se acomodando, no progressivamente exíguo
espaço do jardim, para, em breve, se apoderarem do conteúdo das inúmeras
travessas e terrinas cobertas, expostas a todos, na sua intimidade, e sujeitas
aquele assédio manual que se previa.
Com o bater
das catorze horas, e a chegada dos noivos, recém-casados e, ainda, frescamente
ex-solteiros, o povo presente em uníssono gritou estridentes vivas ao casal
Sousa.
Ela, uma
mastronça, de vinte aninhos, joviais e vividos, louraça, o que disfarçava o
buço, gorda mas, com fortuna paterna. Ele, um mamarracho de vinte e oito anitos
puros e inocentes, moreno, esquelético, com uma fortuna no bolso do casaco
galego oferecido por uma tia avó, do cunhado do genro do pai, por sinal, neto
do primo do irmão da sogra, da primeira esposa do seu pai, mas sem dinheiro.
Ela com bens de raíz bem bons e, ele com boas raízes educativas e morais.
Enquanto se
imploravam aos anjos a felicidade e o melhor neste mundo, e dos outros, para o
parzinho, a fome ia invadindo o ambiente, destruindo o raciocínio, exigindo
maior metabolismo por parte dos organismos cada vez mais débeis, ainda que, insuspeitamente,
ninguém reparasse nesse obscuro pormenor fisiológico.
Só que, para
interromper esses idílicos momentos, uma triste notícia ensombrou o ambiente de
festa para as duzentas e vinte e duas pessoas presentes nos cem metros
quadrados do jardim.
Ao aviso de
silêncio do ‘garçon-maître’ instantaneamente, todos sustiveram a respiração e
desdobraram as orelhas para o triplo da área normalmente ocupada, por forma a
melhor ouvirem as citações da tragédia ocorrida.
Devido a um
incêndio, na cozinha, a carne com que se iria confeccionar os acepipes dos
convidados, queimara-se e, naquela hora não seria possível a sua substituição.
Após o
término da declaração, um burburinho se espalhou pelos canteiros e lotes
arborizados, advinhando catástrofes vindouras, avisos do destino, optimismos
exacerbados. De imediato, se tentaram negociar seguros de habitação, contratos
de ‘catering’, discutiam-se alternativas ao copo-de-água e efectou-se uma
colecta para obstar aos prejuízos.
Subitamente,
um dos criados veio a terreiro dizer que afinal havia carne e que a refeição
estaria disponível passados minutos, pois haviam arranjado alternativa, afim de
satisfazerem o apetite insaciável dos convidados. Seria utilizada apenas carne
de tipo bovina.
Os dois
autores do petisco, beneficiando da surpresa e alegria generalizada e, da
confusão existente, evitaram revelar a origem da carne.
Passaram
três horas, e o caso até passaria despercebido, não fora o desestabilizador do
noivo insistir com os presentes, em coro, a vinda até ao centro da mesa, das
duas sogras para partirem o bolo.
Todo o
aglomerado humano chupava os dedos e lambia os beiços com o paladar daquelas
fatias de carne assada, do caldo de carne, do delicioso empadão de carne e dos
suculentos hambúrgueres, quando o Luís, o noivo, anunciou em voz solene que as
sogras não poderiam estar presentes porque tinham sido engolidas pela multidão
presente. Elas eram as vacas.
Agoniado e
arrependido saí daquele matadouro e, meditando decidi nunca mais comer carne e,
nunca casar, não vá acontecer ter de comer a minha mãe, porque a sogra já foi.
Desde esse
dia ganhei ódio a vacas e nem de cozinheiros posso ouvir falar.
Texto: Fernando de Sucena 1992/MARÇO –
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